terça-feira, 24 de junho de 2014

Está valendo o jogo?

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 21/06/2014
Sérgio Magalhães
Acabada a 2ª Guerra Mundial, Jean Paul Sartre visita Nova York pela primeira vez. À procura de uma imagem urbana reconhecível, que não encontra, ele se sente perdido entre ruas retas. Para ele, a cidade não tem a mesma “natureza” da sua Paris.
Mas a Paris que Sartre naturalizava era resultante das obras promovidas em meados do século XIX e que então causaram estranhamento ao poeta Charles Baudelaire: “A forma de uma cidade / muda mais rápido – ai de mim – / que o coração de um mortal”.
Agora, século XXI, a atriz Fernanda Torres sofre com perdas afetivo-arquitetônicas em seu bairro, como o anunciado fechamento do Cinema Leblon. “Devia haver um decreto para impedir que, ao crescerem, as cidades deixem de ser o que são”, sugere.
Sartre, Baudelaire e Fernanda sintetizam sensações de desconforto ante a perda de referências espaciais.
Embora saibamos que toda cidade é sempre outra, ainda que a forma seja estável, pois o uso, as pessoas e os sentimentos são cambiantes, mesmo assim a relação com o ambiente urbano constrói a identidade cidadã e a noção de pertencimento à cidade. Mudar a cidade, portanto, não é ação destituída de consequências importantes para as pessoas. E, por isso mesmo, precisa ser tratada também na dimensão que interessa ao cidadão e à memória coletiva.
Em nosso arcabouço jurídico, o Estado tem o monopólio de regular o volume e o uso das edificações. O que legitima tal privilégio é a busca pela forma urbana que melhor possa corresponder à ideia de uma boa cidade. A lei expressaria esse caminho. No entanto, o poder público tem abstraído essa responsabilidade, priorizando legislar sobre o aproveitamento imobiliário dos lotes através de índices genéricos que não consideram as proporções dos edifícios entre si e com a cidade. Se, de fato, buscasse o melhor ambiente, o Estado não deveria “vender” licenças para construir além do permitido pela lei, o que tem sido feito crescentemente. Com isso, a imagem ambiental da cidade, na prática, é desenhada pela propriedade fundiária.
Abre-se uma luta inglória entre o interesse do negócio imobiliário e as referências coletivas e cidadãs. Parece ser o caso do Cinema Leblon.
A lei protege o edifício e o seu uso como cinema. Mas a empresa proprietária do imóvel e do cinema afirma que o uso só será possível se for construído um edifício comercial no terreno. O lucro imobiliário constituirá um fundo para manter o cinema? Essa equação não está explicada.
O que se percebe é que a função cinema está sendo utilizada como elemento de troca para permitir que o tombamento do imóvel seja “flexibilizado”. Fica o cinema, mas não fica o edifício tombado. Ou seja, entre preservar a referência de uso e a referência espacial, opta-se pela primeira.
Essa é uma resposta que privilegia um aspecto da construção da memória coletiva em detrimento de outro elemento dela constituinte.

Em tempos de Copa, toda esperança pode mudar em segundos. Vimos agora como ocorreu com a seleção campeã do mundo de 2010. As regras assim o definiram. Mas, no caso da cidade, qual o jogo que vale?

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Nada de resposta única


*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 315 - junho/2014
Sérgio Magalhães

Os movimentos populares por moradia apresentaram intensa mobilização nas últimas semanas em diversas cidades do país. A crise da habitação, porém, não se resolve com a construção de moradia. Na cidade contemporânea, habitar envolve uma multiplicidade de condições – a casa é apenas uma delas. Enfrentar o problema habitacional pressupõe tratar a questão urbana de modo abrangente: na infraestrutura, na mobilidade, nos serviços públicos, no espaço público, nos equipamentos urbanos e, obviamente, no abrigo.
Contudo, nossas políticas públicas, quando existem, são sempre setoriais. Os gestores públicos enfrentam cada problema com o que lhe parece mais objetivo. Isso, porém, tende a conduzir a equívocos reiterados, como se dá na moradia popular.
No Brasil, há décadas, os governos insistem, como política de habitação, na construção da moradia utilizando o modelo dos conjuntos residenciais. A experiência demonstra um duplo fracasso dessa política: (i) na tentativa governamental de ter exclusividade na promoção habitacional popular; e (ii) na adoção de apenas uma modalidade, o conjunto residencial. Com isso, a produção de unidades é muito inferior à demanda, enquanto se amplia o número de moradias erguidas pelas famílias nas condições mais precárias. E vende-se a ilusão de que estamos enfrentando o problema da moradia popular.
Não há resposta única para um problema tão amplo. É a soma de respostas, pequenas e grandes, que poderá enfrentar a questão.
Entre elas está a qualificação do imenso patrimônio econômico, social e cultural já gerado pelo povo brasileiro na produção de suas moradias, muitas vezes mais bem inseridas no contexto urbano do que as dos programas oficiais. A urbanização desses assentamentos populares, em geral carentes de infraestrutura e equipamentos que somente o esforço coletivo pode prover, é uma resposta essencial.
Bairros bem localizados, mas hoje degradados, podem recuperar sua vitalidade com estímulos à produção nova e com melhor tratamento dos espaços públicos e dos serviços. É o caso de muitos bairros centrais de nossas cidades. No Rio, São Cristóvão, Benfica e muitos outros são excelentes lugares habitacionais à espera de política de recuperação. Imóveis mais antigos também oferecem uma infinidade de oportunidades de aproveitamento para a população de renda baixa e média, em especial para o aluguel social, desde que se trabalhe de maneira integrada com financiamento dirigido para a restauração desse patrimônio.
A valorização imobiliária, em geral, tem sido onerosa para as famílias que pagam aluguel, o que pode levar à sua expulsão para áreas periféricas. É um tema complexo. Políticas de moradia para aluguel vinculadas ao crédito para novas habitações, onde parcelas sejam necessariamente destinadas a famílias de renda mais baixa, têm sido testadas em diversos países com resultados satisfatórios.
Os financiamentos habitacionais estão dirigidos prioritariamente para governos e empreiteiros e é por meio deles que a família tem acesso ao bem. Com isso, prevalece o interesse comercial do construtor na escolha do lugar, da tipologia e da qualidade construtiva. A família precisa ter crédito independente – não pode ser um repasse do promotor – e deve poder escolher onde morar e em que condições.
Enfim, o programa federal Minha Casa Minha Vida, se deixar de ser visto como a única resposta para a crise de moradia popular, poderá prestar melhores serviços ao desenvolvimento social e urbano. Certamente estará mais bem inserido na cidade e com melhor qualidade projetual e construtiva.

O problema habitacional é do tamanho do Brasil urbano. Ele deve ter muitíssimas respostas.

São outros quinhentos


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 25/05/2014
Sérgio Magalhães

Passando por um mergulhão recém inaugurado, comentou comigo o taxista em Brasília: “não entendo o pessoal que reclama de gastos com obras da Copa; fosse na Alemanha, que tem tudo, tá bem; mas aqui, que não tem nada?”
De fato, se considerarmos o todo de cada cidade, essa avaliação tem o seu valor.
Brasília, por exemplo. O Plano Piloto, a região do Distrito Federal sob desenho de Lucio Costa, tem qualidade ímpar, com suas superquadras, paisagismo magnífico, edifícios públicos de reconhecimento mundial, enfim, é uma “civitas” e uma “urbes”, como queria o seu autor. Mas no PP moram menos de trezentos mil habitantes enquanto que na Grande Brasília já são mais de três milhões. Nas áreas satélites ao Plano, a realidade é outra: há falta de infraestrutura, de transporte, de arborização e de serviços públicos.
É uma realidade comum às cidades brasileiras, nas quais a maior porção é composta por uma ocupação difusa com urbanização precária e grande escassez de serviços públicos. Tem razão o taxista: falta muita coisa na cidade. A obra pública é indispensável.
Os governos focam na obra o seu objeto de desejo. Querem obra (não necessariamente obra pronta...). E, paradoxalmente, não se preocupam em planeja-las.
No país, os incipientes sistemas públicos de planejamento foram desmobilizados, seus quadros funcionais são mínimos. Os governos passaram a se apoiar em equipes comissionadas, que não lhes dão o suporte da pesquisa e da reflexão.
Querendo abstrair a carência de planejamento e de projetos, sem os elaborar, o governo federal editou um regime especial de licitação de obras públicas, o RDC, com o qual as empreiteiras são contratadas mesmo sem projeto, o que vale para as obras da Copa e do PAC. Reduz-se o prazo para contratação do construtor, não necessariamente o das obras; sem projeto, as obras têm preço e qualidade à conveniência do interesse comercial da empreiteira. Não é um bom legado, como nos diz o sentimento das ruas. Felizmente, a generalização desse regime para todas as obras públicas, em todos os níveis de governo, que chegou a ser proposta no Congresso, foi rejeitada pelo Senado esta semana.
O planejamento da ordenação do território e das obras públicas correspondentes é função de Estado e pede continuidade. Agindo sem planejamento, na emoção da premência, os governos aumentam as chances de erro - no custo, na qualidade e nos prazos. Erram também na avaliação das prioridades, o que é apontado por muitos brasileiros que se manifestam em relação às obras da Copa.
Lá na Alemanha, que tem tudo, por certo cada obra pública é planejada, discutida com os cidadãos, avaliadas possibilidades e custos. O governo contrata projetos completos e depois é que contrata a construção.
Aqui, onde falta tanto, mais necessário seria um Estado preparado para definir investimentos de alto rendimento social. A desigualdade intra-urbana, que se resume na expressão do taxista, “aqui, que não tem nada”, é um dos mais prementes desafios da cidade contemporânea. A construção da consciência coletiva por cidades menos desiguais, esse sim, talvez possa ser um dos melhores legados da Copa.
Uma das lições do futebol é que o improviso às vezes dá certo no campo. Nas obras, fica mais caro. Na Copa, são outros quinhentos. Mas, por enquanto, vamos torcer!