quinta-feira, 22 de maio de 2014

Condição Necessária

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 314 - maio/2014

Irônico paradoxo. Um dos assuntos mais presentes na mídia brasileira é o das favelas. Não obstante, é tema que não figura no rol de preocupações do Estado brasileiro.
A favela não é um fenômeno restrito a poucas cidades. Estão em favelas perto de 10% dos domicílios urbanos brasileiros; em São Paulo e no Rio de Janeiro alcançam mais de 20% dos domicílios dessas cidades.
Embora se constitua como uma tipologia típica, onde predominam as moradias produzidas por auto-construção e na qual o espaço público é, em geral, mal definido, hoje muitas vezes a favela é tratada como o genérico de todo assentamento irregular, inclusive os loteamentos populares. De certo modo esse entendimento corresponde à realidade, pois favelas e loteamentos populares indistintamente em geral são lugares com déficit de infraestrutura, com escassez ou inexistência de serviços públicos, com moradias construídas segundo as possibilidades das famílias – do jeito precário que a falta de condições financeiras permite.
Assim, essas duas tipologias associadas constituem a maior parte das cidades brasileiras. Abrigam mais da metade das moradias e não contam com as condições urbanísticas essenciais à vida contemporânea.
Pode-se afirmar que, no quadro das cidades brasileiras, há um enorme déficit de urbanização e uma grande escassez de serviços públicos, o que muitos chamam por ausência de Estado. 
Mas, ao invés de reconhecer o esforço que as famílias pobres já fizeram em busca de sua inserção na sociedade urbana, tratar de suprir as infraestruturas e garantir os serviços públicos nesses assentamentos populares, o Estado volta seu interesse quase que exclusivamente para a construção de conjuntos residenciais. Simultaneamente, ignora a realidade da maioria e sinaliza com um modelo habitacional que não pode universalizar. Ainda, ao abandonar à própria sorte partes importantes das cidades, o Estado permite que elas sejam tomadas por forças da anomia e por interesses marginais, que impõem regras próprias às populações submetidas – para além da dominação territorial armada. A Constituição brasileira não vige nesses territórios.
Seja no tempo dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (anos 1940-1950), ou do BNH (anos 1960-1980) ou, ainda, do programa Minha Casa, Minha Vida (desde 2009), o modelo habitacional a que o Estado tem se dedicado é ineficiente mesmo tratando-se apenas da produção de moradia. Historicamente, esse modelo produziu menos do que um quinto dos domicílios urbanos. Até mesmo nos momentos de grande prioridade é largamente insuficiente.
Veja-se o caso do Programa MCMV. Anuncia ter construído 1,5 milhão de domicílios desde 2009. Nesse mesmo período, o povo brasileiro construiu mais de 7,5 milhões de residências. Ainda que se considere alcançar a meta de 3 milhões de domicílios até 2015, ainda assim a contribuição do MCMV – importante, não há dúvida – não chegará a 40% da produção de domicílios urbanos brasileiros no período. Ou seja, mais de 60% dos domicílios continuarão sendo produzidos na precariedade e na irregularidade das favelas e dos loteamentos populares.
Estimular a produção de moradia em bases regulares, legais, permanentes, é uma política necessária, indispensável, mas que precisa incorporar outros modelos que não apenas a construção de conjuntos residenciais. A expansão do crédito imobiliário diretamente às famílias é uma alternativa desejável.

Mas, de qualquer modo, não é possível que o país persista na ausência de políticas públicas de urbanização de favelas e loteamentos populares com a correspondente universalização dos serviços públicos. A incorporação desses assentamentos à cidade contemporânea – onde se garanta às suas populações a proteção da Constituição – é uma condição para o desenvolvimento brasileiro. Sobretudo, é um direito cidadão e uma exigência democrática.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Licitação de obras públicas deve ser simplificada? Não. - Atalho para malfeitos -

Sérgio Magalhães

Nós estamos satisfeitos com as obras dos estádios para a Copa? Estão no prazo? Estão com custos conhecidos? Estamos contentes com as obras de infraestrutura prometidas? Estão bem feitas? E as obras do PAC?
Pois saibamos que foram contratadas por uma lei de exceção – o tal RDC. Agora, quer-se estender a todas as obras públicas, sejam municipais, estaduais ou federais, o mesmo regime. O argumento: precisa simplificar a licitação.
O limite da simplificação é o gestor público chamar o empreiteiro seu amigo e lhe dizer: “Faça essa obra. Eu não sei bem o que eu quero, mas você pode começar. Meu povo garante os dinheiros.”
Será fantasia?
Nas décadas de inflação era difícil superar a lógica da premência: qualquer coisa agora é melhor do que nada amanhã.  Os incipientes sistemas públicos de planejamento e de gerenciamento de obras foram esvaziados.
Com a estabilidade e o crescimento econômico afloraram as demandas reprimidas e outras tantas se apresentaram. Mas, o serviço público vê-se às voltas com a falta de quadros técnicos de planejamento e de gerenciamento de projetos e obras; e com a abundância de quadros político-partidários, em geral despreparados para as funções.
É verdade que presidentes, governadores e prefeitos são premidos pelo prazo de mandato; é compreensível que tenham pressa. Mas o caminho que parecem querer não é correto; levará ao aumento dos problemas, das obras inacabadas com custo exagerado e desnecessárias. Não é a velocidade com que se licita a obra a chave da questão.
O mundo todo sabe, sobretudo os empreiteiros, que é a indefinição ou falta de projeto o principal fator de atrasos e de aumento de custos de obras. A indefinição projetual, aliás, é uma aliada poderosa da corrupção e dos malfeitos.  
Para superar a indefinição e a falta de projetos completos, o governo imaginou um atalho: transfere ao empreiteiro a tarefa de “projetar, construir, fazer os testes e demais operações necessárias e suficientes para a entrega da obra”.
Alguém faria isso com seus próprios recursos? Mesmo um construtor, no interesse de fazer sua casa, e sem tempo, contrataria um colega nessas condições?
O interesse público está na adequação da obra às necessidades da coletividade, na boa qualidade dos serviços e no seu preço justo. Isto exige um trabalho continuado que começa em definir o que se quer (o “Programa de Necessidades”), passa pela elaboração de projetos completos, seus licenciamentos, orçamentos confiáveis e transparentes, por uma licitação de obra que permita a concorrência, o gerenciamento dos projetos e o acompanhamento gerencial da obra .
Se os governos querem pressa precisam melhorar seus processos de decisão, o que se faz com órgãos técnicos de planejamento estruturados como função de Estado. É o que o mundo desenvolvido aprendeu.
As entidades nacionais de arquitetura e urbanismo, em documento intitulado “As obras públicas e o Direito à Cidade”, entregue ao governo federal e às lideranças do Congresso, são contrárias à extensão do RDC a toda obra pública e pleiteiam que a revisão da Lei de Licitações, em andamento no Senado, seja concluída com a exigência de Projetos Completos.
O Brasil é um país maduro, importante – não pode continuar aos solavancos. Os problemas urbanos precisam ser enfrentados para promover a democratização de nossas cidades. Esses atalhos levam a cidades com maior desigualdade social, insustentáveis e precárias – e à desmoralização da Política.

O futuro não dará razão a tais atalhos.

O Estado precisa circular

 *Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 26/04/2014
Sérgio Magalhães
Mais uma vez um conflito armado entre traficantes e policiais ocorre em área atendida por Unidade de Polícia Pacificadora, no Rio, e deixa vítimas fatais.
Conflito armado entre traficante e polícia, com vítima, ocorre há muito tempo em grandes cidades brasileiras e, pela recorrência, já é pouco divulgado. Mas a invisibilidade do fato, por sua banalização, não supera as suas consequências seja para a família da vítima ou para a cidadania.
No caso ocorrido em Copacabana, esta semana, foi diferente; houve protesto público nas ruas do bairro que se amplificou em noticioso local e internacional por dois principais motivos: pela proximidade da data da Copa do Mundo e por se tratar de área com UPP. Certamente, são duas situações especiais. Uma, é passageira; outra, espero, há de se constituir em um processo que ajude à redução da desigualdade social das cidades brasileiras.
Convivemos no país com um irônico paradoxo: um dos assuntos mais presentes na mídia é o das favelas; não obstante, o tema parece não figurar no rol de preocupações do Estado brasileiro.
A favela típica não é um fenômeno restrito a poucas cidades. Em São Paulo e no Rio de Janeiro supera 20% das moradias. Ainda, a favela é muitas vezes tratada como o genérico de todo assentamento popular – inclusive loteamentos.
Essas duas tipologias urbanísticas somam cerca de metade das moradias urbanas brasileiras. São muito diversificadas, mas, em geral, são lugares com pouca ou nenhuma infraestrutura, com escassez ou inexistência de serviços públicos, inclusive os de segurança e de regulação. A esse déficit de urbanização e de serviços públicos muitos chamam por “ausência de Estado”.
Assim, criam-se condições para que essas áreas sejam tomadas por interesses marginais, muitas vezes com dominação territorial armada, que impõem jugo discricionário às populações moradoras.
O desafio é justamente superar essa ausência de Estado com a urbanização e a universalização dos serviços públicos, também o de segurança, e fazer vigir aí a Constituição - o que pressupõe políticas públicas consistentes, continuadas, acordadas compartilhadamente como uma verdadeira agenda nacional para a redução da desigualdade social urbana.
A urbanização de favelas é uma experiência exitosa, demonstrada no Rio pelo programa Favela-Bairro, e em outras cidades. Mas não é algo que possa ser realizado sem consideração para com as preexistências ambientais, espaciais e culturais, sem bons projetos urbanísticos e sem cuidados construtivos. Nas áreas atendidas, “o Estado pode circular”, como pede o secretário de segurança do Rio.
Recuperando o território e protegendo a população do arbítrio, as UPPs cumprem papel importante em defesa da cidadania. Certamente é um longo processo e de larga abrangência.
Enquanto isso, precisamos proteger esse instrumento aplaudindo seus acertos, corrigindo suas falhas, sobretudo não tergiversando com eventuais descaminhos de seus agentes. Há uma essencial esperança no seu êxito.
Cada vítima de violência, em área de UPP ou fora dela, atingida por bandidos ou por policiais, não há de morrer em vão. Seu sacrifício não pode ser banalizado e ficar invisível; deve ser acolhido em reforço de nosso compromisso político no caminho da democratização de nossas cidades.

É nesse caminho que o Estado precisa circular.