sexta-feira, 27 de setembro de 2013

NÚMEROS NÃO MENTEM




Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 307 - setembro/2013


Em julho, o Brasil emplacou 300 mil novos veículos. Em um ano, provavelmente serão 3 milhões. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calcula que a população brasileira tende à estabilidade até 2030, perdendo população, a seguir.
Essas contas são questões isoladas? Não. Elas compõem um quadro representativo de temas essenciais para as cidades brasileiras. Mobilidade, serviços públicos e ocupação urbana são elementos fundamentais para a qualidade de vida cidadã e também para o desenvolvimento nacional.
O número de veículos licenciados reflete a prioridade que os governos têm dado à indústria automobilística. A partir dos anos 1960, o país optou pelo rodoviarismo. Desconstruiu a rede de bondes, enfraqueceu as ferrovias urbanas, desconsiderou o transporte de alto rendimento, investiu em viadutos, elevados, alargamentos de vias e constituiu um transporte coletivo baseado em ônibus, incapaz de suprir as exigências das grandes cidades nos deslocamentos impositivos casa-trabalho.
(Parece ter sido adotado um modo de reduzir a frustração ante tal sistema de transporte criando-se no usuário a esperança de que mais adiante ele será um feliz proprietário de automóvel – e poderá pairar em engarrafamentos crescentes com conforto: sentado, com ar condicionado e ouvindo a música preferida...)
Essa opção desestruturou o espaço público, descaracterizou bairros e expandiu as cidades para muito além do que o aumento demográfico exigiria. A infraestrutura e os serviços públicos não acompanharam tal expansão. Partes das cidades se viram abandonadas pelo Estado, permitindo que bairros pobres – favelas, loteamentos e conjuntos residenciais – fossem dominados por bandidos armados.
Não mais crescendo a população, como prevê o Ipea, será preciso desconstruir a ideia hegemônica de que expandir a cidade é sinal de progresso. Ao contrário, cidades compactas aumentam a chance de melhor atendimento à população e tornam mais baratas infraestruturas e serviços públicos. O Estado, portanto, poderá ter melhor desempenho no papel de prestador de serviço público, inclusive o de segurança. Não faz mais sentido estimular a ocupação de novas áreas, investir recursos públicos na expansão da mancha urbana – e abandonar os bairros consolidados.
O Estado brasileiro – nas três instâncias de governo – tem responsabilidade nesse quadro, seja por opções equivocadas ou por omissão, e precisará rearrumar-se para enfrentar os desafios contemporâneos.
A ditadura de índices econométricos a que as cidades são submetidas, que lhes impõem mais automóveis, precisará dar lugar à avaliação qualitativa no desempenho da vida urbana e cidadã. A universalização da infraestrutura urbana e dos serviços públicos, inclusive o de segurança, é uma exigência democrática que as ruas estão a exigir. E a contenção das cidades é uma equação que se promove justamente com transporte de alto rendimento (do tipo metrô), com aproveitamento e manutenção das infraestruturas existentes, com crédito para habitação. E também sem estímulos à especulação de terras e sem investimentos públicos em lugares que possam levar à expansão. Os privilégios devem ser dados aos locais onde as pessoas vivem e à melhora das condições de mobilidade, em especial à relação quotidiana casa-trabalho.
Os incipientes quadros de planejamento urbano e territorial mantidos pelo Estado foram desfeitos nas últimas décadas. Mesmo no setor privado, as equipes de planejamento e projeto desestabilizaram-se ante a escassez de políticas públicas correspondentes.
Somos, porém, quase 200 milhões de brasileiros em cidades. É urgente  recuperar a capacidade nacional de enfrentamento das demandas de médio e longo prazo localizadas no sistema urbano brasileiro. 

RUAS COM ALMA


Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 306 - agosto/2013

“Eu amo a rua”, diz João do Rio (1880-1921), em sua crônica-ensaio que inaugura o livro famoso, acrescentando: “esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse que esse amor é partilhado por todos vós.” Amor que “une, nivela e agremia”, o “único que resiste às idades e às épocas”.
“A rua do alinhado das fachadas, é um fator de vida das cidades” – “é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas”, diz o nosso autor. “A rua faz as celebridades e as revoltas.”
No início do século XX, quando essa crônica foi escrita, os pensadores modernistas do urbanismo ainda não haviam condenado a “rua corredor”, aquela “do alinhado das fachadas” de João do Rio. A condenação se deu pouco depois, enunciada pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), e disseminou-se mundialmente como febre avassaladora. Buscou-se uma nova cidade, onde a igualdade, o socialismo e o nivelamento social fossem produzidos por um novo modelo de urbanismo – sem ruas. Nele, cada função urbana (morar, trabalhar, circular, recrear) estaria bem definida e se constituiria autonomamente das demais.
A cidade modernista criou os bairros homogêneos, os condomínios isolados, os altos edifícios autônomos da vizinhança, os shoppings centers, as autopistas, os elevados – e a ausência de calçadas.
Cem anos pode ser pouco na vida das cidades – mas pode nelas promover grandes mudanças. Assim ocorreu com as cidades que cresceram nas últimas décadas sob a égide modernista. O lugar da circulação não seria “povoado”, mas preenchido por veículos e pela velocidade. Esse modelo foi algoz das ruas: não acabou com elas, mas as transformou em lugares inóspitos ao convívio, barulhentos, poluídos, desinteressantes.
Os edifícios foram dispensados de manter relação de escala com o espaço público; independentes do lugar e da paisagem, responderam muito bem ao interesse imobiliário. O mesmo interesse, aliás, que faz expandir a cidade, consumir mais terra urbana sem proporção com o crescimento demográfico, em bairros cada vez mais distantes e menos densos. Portanto, resultando em infraestrutura, transporte e serviços públicos mais caros e mais escassos.
Tal modelo urbanístico, demonstrado como insustentável e anti-urbano, ainda é o adotado pelas cidades brasileiras. No entanto, quando viaja ao exterior, em geral, o brasileiro busca cidades onde a rua mantém vitalidade, onde o espaço público é bem estruturado, onde se caminha por ruas-corredores com calçadas bem mantidas, com interesse diversificado de funções urbanas. A escala urbana adequada, mesmo em cidades de altos edifícios, como Nova York, garante ruas nas quais o convívio é realçado por inúmeras atividades diversas ao nível do passante. Cidades europeias, como Paris ou Londres, mantém edifícios corporativos de alto nível empresarial integrados a áreas residenciais, comerciais e de serviços de pequena e média escala.
Quando as velhas ruas das cidades brasileiras se enchem de jovens a exigir mudanças, elas retomam momentaneamente a antiga vitalidade, e reivindicam uma qualidade urbana que sabemos ser possível; um outro paradigma urbanístico é desejado. A cidade da segregação, do isolamento, do desperdício, da falta de serviços, da “imobilidade” de custo proibitivo e da circulação sem vida – esta cidade não corresponde ao sonho contemporâneo.
Paradoxalmente, o desejo da cidade de hoje está cantado há cem anos por João do Rio, com ruas que unem, nivelam e agremiam em um amor compartilhado por todos. Ruas que tem alma.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O espírito da cidade


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 14/09/2013
Sérgio Magalhães

“Que será Buenos Aires?”, pergunta em famoso poema o escritor argentino Jorge Luís Borges. Primeiro, descreve o que lhe é próximo: Buenos Aires “é o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai”, “é a mão de Norah”, “é aquele arco da rua Bolívar”. Mas, a seguir, o poeta amplia o entendimento: “Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, o miolo secreto dos quarteirões, os últimos pátios, é o meu inimigo, se eu o tenho, (...) é o estranho, o bairro que não é teu nem meu, aquilo que ignoramos e aquilo que queremos.”
A cidade é minha íntima e é minha desconhecida, íntima de meu desconhecido e desconhecida dele, íntima talvez de meu inimigo, se eu o tiver.
Essa condição nos faz, a cada um, protagonista da vida urbana e fundamenta o direito à cidade – que, na democracia, é indissociável da cidadania. Ele engloba o viver em segurança e liberdade (sabemos o quanto custa a violência!); inclui a disponibilidade das infraestruturas essenciais à vida civilizada e deve assegurar condições satisfatórias de habitação e mobilidade.
Mas, se esses valores têm se afirmado na consciência coletiva, ainda são escassos. Há clara evidência da insuficiência dos governos em suprir a cidade desses deveres de Estado.
Em recente estudo, o Observatório das Metrópoles faz uma avaliação sobre as condições de “bem estar urbano” relativas às quinze maiores cidades metropolitanas brasileiras. Os pesquisadores Raquel Oliveira e João Nery informam que, dos 338 bairros que compõem a cidade metropolitana do Rio de Janeiro, 134 (40%) apresentam condição ruim ou muito ruim segundo os indicadores considerados. Na mobilidade, 240 bairros (71%) apresentam condição ruim ou muito ruim. Segundo dados da ANTT, entre as metrópoles, o Rio tem o mais alto percentual de moradores que gastam mais de duas horas nos trajetos casa-trabalho.
Se a cidade é “o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai” e simultaneamente a “rua que nunca pisei”, como diz Borges, esses números não podem ser apenas estatísticas, renovados a cada pesquisa. Somos nós. Haver um bairro dominado por bandidos armados não é inevitável – sobretudo depois da experiência das UPPs. Milhões de cidadãos, todos os dias, perdendo três ou quatro horas no trânsito, ou morando sem infraestrutura adequada, não é um problema só deles – é de toda a sociedade.
Não se trata de reinventar a cidade, como pensavam os modernos ante o avanço demográfico. Mas é um impositivo democrático reorganizar as relações de decisão e poder na metrópole.
Nossas cidades precisam ser pensadas e planejadas para além dos governos e das idiossincrasias dos mandatários eventuais; em respeito à diversidade social, cultural e de interesses, tampouco podem ficar reféns de pressões hegemônicas, hoje ditadas pelos desejos imobiliários e rodoviaristas.
As cidades mudam sempre, ainda que estáveis [e feitas de concreto]. Paradoxalmente, está em seu espírito, composto pelos sonhos de todos e pela vivência de seus espaços, a continuidade de nossos vínculos essenciais. O “último espelho” e o futuro comum.