sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Querer e Poder


Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 304 - julho/2013

O general Ernesto Geisel, respondendo a uma pergunta sobre a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, foi claro: “Reclamam de eu não ter feito um plebiscito. Ia ser dispendioso – e eu não pretendia mudar minha decisão.” Já na condição de ex-presidente da República, nesse depoimento prestado a pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, publicado em livro, não titubeou em reafirmar a potência discricionária de sua decisão. Tudo muito simples: estava decidido, não tinha porque submeter suas conclusões à população.
Nestes quase 40 anos, muita coisa mudou em nosso país. Terminou a ditadura, já cinco presidentes eleitos decorrem da promulgação da ‘Constituição Cidadã’, a economia parece ter entrado nos eixos, a população urbana mais que dobrou. Apesar dessas condições, as decisões referentes às cidades parecem obedecer a uma metodologia ainda estacionada naqueles tempos do general.
Os principais investimentos, aqueles que efetivamente modificam a vida urbana, são em geral gestados e decididos – quando os há – em gabinetes distantes do cotidiano cidadão e impostos a todos como fatos consumados. Afinal, são ‘investimentos’: se não estiverem de acordo, outros lugares os quererão...
Ocupação, mobilidade, habitação, grandes equipamentos – todos são elementos centrais para o desenvolvimento urbano. Decisões sobre eles não são destituídas de importantes consequências para as cidades e os cidadãos.
Um exemplo de decisão discricionária no âmbito da ocupação do território vem do governo do Distrito Federal. Há alguns meses, contratou-se empresa de Cingapura para ‘projetar’ os próximos 50 anos de Brasília, à revelia de uma intensa manifestação coletiva contra esse verdadeiro crime de lesa cultura. Brasília, justamente a cidade que se consagrou como símbolo da capacidade de superação do povo brasileiro, é oferecida ao critério projetual de interesses estrangeiros, sem explicação.
Na mobilidade, decisões sobre traçados de linhas de metrô são tomadas em âmbito restrito – ou até mesmo contrariando planos licitados – sob ímpeto de estudos desconhecidos pela população ou por especialistas. É o caso do metrô no Rio de Janeiro, com a substituição da projetada Linha 4, licitada há anos, por uma extensão da linha 1, que ligará a zona Sul à Barra da Tijuca, com custo superior a R$ 8 bilhões.
Que consulta foi promovida em Belo Horizonte sobre a decisão de reposicionar o Centro Administrativo do estado? Localizado em área periférica da cidade, tem forte impacto sobre a expansão da região metropolitana e seus sistemas de mobilidade.
O programa federal Minha Casa, Minha Vida impõe-se a todas as cidades sem discriminação de clima, lugar, cultura. Mesmas tipologias construtivas são paginadas de norte a sul, de leste a oeste, por meio de conjuntos residenciais com milhares de unidades, implantados para além das franjas urbanas. Apesar da crítica continuada dos diversos agentes sociais e profissionais, persistem impávidos os governos e seus serviços financeiros e administrativos na decisão, desdobramento empobrecido de velhos modelos, já condenados, ao tempo do extinto Banco Nacional da Habitação.
A ausência de planejamento, a falta de projeto e a decisão discricionária são elementos de um processo perdulário que gasta exageradamente os dinheiros públicos, o território das cidades, a energia cidadã, a confiança na política e na democracia. A inflação e a ditadura certamente foram dois potentes agentes promotores da degradação da ideia de planejamento e de projeto no Brasil. Mas não é razoável que persistamos nesse caminho depois de tanto tempo de evidência de seus desastrosos resultados.

(POSSÍVEL DESTAQUE)
Os principais investimentos, aqueles que efetivamente modificam a vida urbana, são em geral gestados e decididos – quando os há – em gabinetes distantes do cotidiano cidadão

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