segunda-feira, 1 de julho de 2013

A rua não quer apito


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 22/06/2013
Sérgio Magalhães

O General Geisel, respondendo a uma pergunta sobre a sua iniciativa de fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, foi claro: “Reclamam de eu não ter feito um plebiscito. Ia ser dispendioso – e eu não pretendia mudar minha decisão.”
Nesse depoimento prestado em 1994 a Maria Celina D’Araujo e Celso Castro, pesquisadores do CPDOC da FGV, o ex-presidente não titubeou em reafirmar a potência discricionária de sua sentença. Simples assim: tinha decidido, não havia por que submeter sua decisão à população.
Mudou muito o país. Foi-se a ditadura, seis eleições decorreram da edição da Constituição, a economia entrou nos eixos, a população urbana triplicou. Contudo, as decisões referentes às cidades parecem obedecer a uma metodologia ainda daqueles tempos do general.
Investimentos importantes, de largas consequências para as cidades e os cidadãos, são gestados em gabinetes e impostos como fato consumado. Não se compõem em um quadro de planejamento. Logo, não explicitam critérios, tampouco alternativas; não  traduzem prioridades nem se dá transparência às escolhas. São instrumentos de realimentação do poder.
Sem planejamento, também os projetos são frutos discricionários de “oportunidades”, sejam elas reais ou fictícias, públicas ou privadas.
Assim se faz Brasil afora, agora apoiado em lei que permite licitar obra a partir do anteprojeto (ou seja, sem definições adequadas), o que implica, por óbvio, em multiplicar os custos e dividir a qualidade. A justificativa é poder atender os cronogramas exigidos pela Copa, mas a medida se aplica a qualquer obra pública.
Os bilionários estádios, novos ou reformados, estão nesse novo paradigma. As obras são inflacionadas não apenas pela própria inflação, mas, sobretudo, por tais métodos.
Sem planejamento e sem prioridades transparentes, nossas cidades seguem o rumo da inviabilização, tanto na qualidade do espaço urbano como nos serviços públicos não prestados ou mal prestados,  como, aliás, têm alertado o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e profissionais da área. Na mobilidade baseada no rodoviarismo, o roteiro já vencido constrói uma verdadeira tragédia cotidiana – onde o transporte coletivo de alto rendimento, sobre trilhos, é desconsiderado. Assim, nas grandes cidades os governos gastam 14 vezes mais recursos para o funcionamento do sistema de transporte individual do que para o de transporte coletivo, como informa o Relatório da ANTP de 2011.
Nessa prática discricionária não são os interesses do Estado que estão sendo servidos, como se alega; menos ainda o da população. O método de Geisel não nos serve.

A inflação e a ditadura certamente foram potentes promotoras da degradação da ideia de planejamento no Brasil. Não é razoável que tal consequência ainda persista.
A inexistência de planejamento, a falta de debate e a decisão discricionária são elementos estruturais de um processo predador dos dinheiros públicos, da qualidade urbana, da energia cidadã, da confiança na política e na democracia. 

SÉCULO 21, OU 20?


*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 303 - junho/2013

Sérgio Magalhães

Duas são as paisagens culturais que hoje pontuam o território brasileiro: o “espigão”, no Brasil urbano; e a soja, no Brasil rural.
(Espigão –o edifício alto- e soja foram recentes pautas da mídia. O primeiro, em série de reportagens de O Globo, mostrando sua disseminação em cidades médias e grandes do país. A soja, por conta de sua avantajada produção que fica estacionada em caminhões ao longo de estradas congestionadas que demandam os portos, também congestionados.)
Ambas as paisagens são sinais de um país que cresce. Mas, para que não signifiquem uma chegada tardia ao século passado, é necessário um reequilíbrio compatível com as expectativas do século 21.
Na nossa contemporaneidade, firmam-se conceitos associados à nova compreensão sobre os limites do planeta, o bem estar geral a que precisamos corresponder.  Assume-se como indispensável o respeito ao lugar e às suas preexistências. O desperdício, seja de energia ou de meios, não é aceitável. O espaço é o da diversidade. O crescimento não pode se dar sobre tábula rasa, seja ambiental, cultural, social ou econômica.
Como vemos no panorama urbano brasileiro, a imagem ambiental das cidades cada vez mais é definida por altos edifícios com dezenas de andares –o “espigão”. Esse modelo vigora de norte a sul, de leste a oeste, e se torna homogeinizador da paisagem cultural, ainda que em situações de diversidade geográfica.
Tornou-se fácil construir um espigão. A tecnologia construtiva é de amplo domínio; os elevadores são relativamente baratos; os riscos econômicos são reduzidos e os recursos financeiros são facilitados através da venda em condomínio.
Nas cidades que passam agora pelo boom imobiliário, em geral, o espigão é erguido em local com escassez de infraestrutura sanitária, de mobilidade e de serviços públicos –situação, aliás, típica da maior parte das áreas urbanas. Erguido junto a residências e baixas construções, cria uma relação entre escalas que desqualifica o ambiente existente.  Os preços baixos dos terrenos permitem lucros proporcionais à altura da edificação. Assim, há estímulo para ampliar a produção.
Há estreito vínculo entre empreendedor imobiliário e prefeitura, que vê oportunidade de reforço de caixa com as aprovações –quando não se busca também uma ajuda às próximas eleições; ademais, na percepção popular, o edifício alto pode ser visto como signo de progresso.
  
Mas o poder público detém o monopólio da legislação urbanística no pressuposto de definir os volumes a edificar capazes de compor o melhor espaço urbano, tudo no interesse coletivo. Na medida em que negocia a altura dos edifícios a construir, admitindo mais andares mediante pagamento, transfere ao empresário aquela atribuição. Assim, não é mais o conceito de melhor configuração urbana que prevalece, mas o de maiores benefícios financeiros. Não é o espaço público que vige, mas o lote.
De certo modo, esse descompasso é uma contrafação à ideia constitucional que dá ao poder público o monopólio da legislação urbana, no interesse da composição do conjunto construído, em harmonia com o espaço público. E, embora possa estar apoiada em leis, nem por isso essa atitude passa a ser legítima.
A soja segue caminho semelhante. Vai ocupando terras das coxilhas do Rio Grande às matas da Amazônia, passando pelos pinheirais do Paraná e pelo cerrado do Centro Oeste. Tudo se uniformiza com complementos e corretivos químicos para fazerem a terra produzir – ainda que o sistema hídrico se banalize com os agrotóxicos. A grande escala se impõe e expulsa a diversidade, seja ambiental, seja produtiva.
Colhida a soja, chegar ao destino já é outra questão. Construído o espigão, circular pela cidade já é outro departamento.  
Pasteurizada a paisagem cultural, é o século 20 que nos acena. Para prosseguirmos rumo à contemporaneidade, precisamos dos ajustes que este nosso tempo nos sugere. A decisão é nossa.