terça-feira, 30 de abril de 2013

Minha casa no país do carro zero


Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 27/04/2013

Preocupada com a qualidade de obras do programa Minha Casa Minha Vida, a presidente Dilma Roussef declarou: “Eu não fui eleita para dar casa de qualquer jeito para a população.”
É de meados do século passado que data a grande expansão demográfica e de ocupação territorial que caracteriza o Brasil de hoje. Foram as cidades que suportaram o crescimento populacional e proporcionaram grandes melhoras nos indicadores sociais. Em setenta anos, os moradores em cidades passaram de 12 milhões para 170 milhões. E os domicílios urbanos, que eram 2 milhões, passaram a 50 milhões, multiplicando 25 vezes. Hoje, 85% dos brasileiros vivem em cidades.
E como foram construídas as moradias para essa população? Foram construídas pelo próprio povo, na precariedade que a falta de recursos impõe. Daí, expressiva parcela morando em condições irregulares, em favelas e em loteamentos sem infraestrutura adequada.
De fato, 80% dos domicílios foram erguidos exclusivamente com a poupança familiar, sem financiamento algum. Isto, apesar de, desde os anos 1940, o governo ter assumido a responsabilidade de prover a moradia popular.
Através de programas habitacionais que se sucedem, seja o dos IAPs, da Casa Popular, do BNH, do Minha Casa Minha Vida, são os governos os protagonistas. Mudaram os regimes, ditadura, democracia, ditadura, democracia –mas o modelo permanece o mesmo. É o governo que diz onde e como o povo deve morar.
Diferentemente do que ocorre com os automóveis, para os quais há crédito direto, abundante, a juro zero, e o interessado escolhe o que quer, no caso da casa popular é o governo que escolhe. Escolhe a tipologia a construir, escolhe onde e quem constrói, e detém o monopólio do financiamento. Mas, nestes setenta anos, promoveu apenas 20% das moradias urbanas –somando tudo que foi construído por todos os governos, em todas as instâncias, mais o que foi financiado pelo BNH, Caixa e todos os bancos privados.
Ou seja, a família brasileira construiu, sozinha, quarenta milhões de domicílios, enquanto a soma de todas as políticas habitacionais alcançou dez milhões.
O MCMV é um esforço importante. Mas é mais do mesmo. Atingindo as metas, construirá 3,4 milhões de moradias em 8 anos, enquanto no período o país terá construído 12 milhões. Como? Tal como antes, na dificuldade, na precariedade, na irregularidade.
O governo não precisa dar casa para o povo. Sobretudo “de qualquer jeito” – a má qualidade inclui a má localização. Basta que não monopolize os recursos e as decisões. Que o cidadão seja considerado apto a decidir onde e como morar. E que o crédito lhe seja assegurado, tal como o é para comprar um automóvel. (O subsídio do MCMV é importante, é um avanço que precisa ser preservado.) Certamente, teremos obras com preços menores e melhor qualidade.
A presidente Dilma, se assim for, não dará casa, mas oferecerá a oportunidade de moradia para todos. Se o povo fez as cidades apenas com a própria poupança, com a participação da poupança coletiva fará cidades muito melhores.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Inércia epistemológica

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 302 - Abril/2013

Sérgio Magalhães

Por que temos prazer em passear por cidades bem conformadas urbanisticamente e continuamos a construir cidades espacialmente desestruturadas?
Nestes pouco mais de dois séculos de industrialização, o mundo urbano transformou-se de modo exponencial, em população, em tamanho das cidades, em multiplicidade de funções, em imagem ambiental.
Os principais pensadores do urbanismo moderno dedicaram-se naqueles primeiros tempos a enfrentar o enorme desafio da explosão demográfica e do crescimento das cidades. Concluiram que as cidades herdadas não seriam capazes de responder pelos novos tempos; e que um novo modelo urbano haveria de ser concebido.
Os modernistas de princípios do século XX eram funcionalistas, viviam tempos fordistas, e idealizaram cidades “racionalistas” onde as funções urbanas seriam muito bem definidas. Trechos inteiros das cidades passaram a ser apenas residenciais; os centros se transformaram em lugares apenas de negócio. Isoladas entre si, as funções seriam interligadas por uma circulação viária autônoma das edificações. A rua não seria mais a articuladora dos espaços, tal como propugnava Le Corbusier, o maior doutrinador modernista. Com o advento do automóvel, a cidade deixou-se dominar por ele.
Assim, seja por sobre a cidade existente, seja nas expansões que o crescimento demográfico impôs, tudo mudou. Grandes edifícios, grandes gramados, grandes vias. A cidade se segmentou. O modelo urbanístico modernista tornou-se vitorioso e hegemônico.
Inegavelmente, rompendo com a estrutura herdada, ele foi capaz de promover a expansão das cidades permitindo absorver as novas populações. Privilegiando o automóvel, deu condições para o “derramamento” da mancha urbana e, em certo sentido, à produção das periferias. Idealizando a igualdade, alcançou a multidão.
Não obstante suas vitórias, o urbanismo modernista recolhe grande crítica, sobretudo pelo enfraquecimento (ou anulação) do espaço público como lugar do encontro e da interação social. O prazer de fluir pela cidade nos é oferecido naqueles ambientes onde predomina o continuum construído, ao invés dos edifícios isolados; onde há diversidade de funções; e onde podemos caminhar com conforto por um espaço urbano bem definido, com boas proporções e escala compatível com o homem. São cidades pré-modernistas que potencializam esse prazer: flanar por Paris é inesquecível; é no traçado em quadrículas de 1811 que Nova York nos encanta; mesmo em nossas cidades de hoje, é nos seus trechos de urbanismo convencional que se encontram os melhores ambientes.
Não há nostalgia nesse prazer. Não precisamos que as cidades sejam antigas para esse desfrute. Tampouco precisa haver privilégios: o espaço público de alta qualidade não exige a riqueza econômica ou o contraponto de outros mal compostos e anódinos. É que a qualidade não se apresenta pela antiguidade ou pela raridade, mas pela conjunção de fatores objetivos, tais como o modo como os edifícios se articulam entre si, o uso em diversidade que lhes é conferido, a escala que vêem a compor, a configuração do espaço, a textura, entre outros elementos arquitetônico-urbanísticos, funcionais ou simbólicos.
O urbanismo contemporâneo reconhece esses atributos qualificadores e com eles faz o seu ideário de revisão do modernismo. No entanto, tais valores ainda não se encontram participantes das decisões políticas e empresariais majoritárias na produção das novas edificações e de novos trechos urbanos. E as cidades continuam sendo construídas para o isolamento. É que há, certamente, uma “inércia epistemológica” que afasta os conceitos da prática –às vezes por décadas.
Contudo, com a valorização dos modos alternativos de circular, com a ênfase na sustentabilidade ambiental, com a disseminação das informações, talvez estejamos hoje chegando ao fim dessa transição. Oxalá!

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Coelho por gato



Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 30/03/2013

Três anos depois da tragédia no Morro do Bumba, Niterói, edifícios que ainda estavam sendo construídos para os desabrigados tiveram que ser demolidos. Com rachaduras, eram irrecuperáveis. No Rio, o estádio do Engenhão é interditado por problemas estruturais. Obras importantes – como metrôs e museus - até triplicam de preço durante a construção. Há algo em comum entre esses casos?
A autonomia entre as atividades de projeto e de construção decorreu do aumento de complexidade dos edifícios. Enquanto a tecnologia construtiva era vernacular, as duas atividades eram conjuntas. Já no Renascimento elas se diferençavam.
Com a Modernidade se alcançou um novo patamar que levou à especificidade doutrinária e programática tanto do projeto como da obra, distinguindo-se autorias e responsabilidades. Como na arquitetura, também no urbanismo houve a necessidade de tratar-se autonomamente o projeto, a construção e o uso –que, no caso, pode ser arquissecular.
Quem projeta não constrói. (Quem acusa não julga; quem joga não apita.) Há impedimentos éticos essenciais que determinam essa prática.
Mas no Brasil, há alguns anos, tem sido desconsiderada essa necessária independência. Os governos tem exacerbado uma simbiose que é responsável pela reiteração de dificuldades em obras públicas. E pelo seu encarecimento.
Lei federal que rege as compras públicas aboliu a exigência do projeto completo para se proceder à licitação da obra. Permitiu-se que o detalhamento de um projeto, o Projeto Executivo, fosse realizado concomitantemente com a construção. Ora, isso cria uma indefinição orçamentária que leva à hegemonia do construtor sobre o projeto. Assim, especificações podem ser descaracterizadas em benefício financeiro do detentor do contrato de obra e em detrimento da qualidade. É óbvio: os fatores de convencimento conduzidos pelo construtor são mais prementes, ou valiosos, do que os determinantes projetuais. Ou seja, o governo compra um coelho e recebe um gato.
Recentemente, a lei passou a permitir que uma etapa ainda mais inicial, o Ante-Projeto, servisse de base à licitação. Sob o argumento que seria necessário aos prazos comprometidos com a Copa do Mundo, concedeu-se ao construtor ainda maior poder de decisão. Quem acredita que sem projeto se ganha tempo?
Está na moda a chamada Parceria Público Privada. Em geral, contorna licitações, também transferindo importantes decisões de projeto e de obra aos empresários.
No Programa Minha Casa, Minha Vida, todo o processo fica com a empreiteira: escolha do terreno, “projeto” e construção.  Com o governo fica o pagamento e a designação do morador. A este, cabe aceitar ou aceitar. (As aspas na palavra projeto aí estão porque quase sempre se trata de um “carimbo”, que se ajusta, ou não, aos lugares... como visto no Bumba.)
A função governo cresceu muito no Brasil. Mas o Estado está aquém do necessário, como nos serviços públicos urbanos, cuja universalização é exigência democrática.
A promiscuidade entre projeto e construção não favorece o cumprimento das responsabilidades que a República pressupõe. Coelho é coelho; gato é gato.
Boa Páscoa!

Descompasso urbano




*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 301 - Março/2013
Sérgio Magalhães
Tomo a liberdade de invadir a seara de cientistas políticos e de outros saberes, alguns dos mais expressivos deles presentes em “Ciência Hoje”, para comentar sobre o domínio do Estado brasileiro por parte de estamentos políticos voltados apenas a seus próprios interesses. Meu olhar é para as consequências desse domínio no âmbito do espaço construído nacional.
O sistema urbano brasileiro, como se sabe, em poucas décadas deu um salto vertiginoso no crescimento demográfico, no número de domicílios, na expansão das cidades. Simultaneamente, vertiginoso também foi o aumento das carências, na infraestrutura, na mobilidade, na segurança pública, nos serviços urbanos. A cidade se apresenta como lugar do desenvolvimento e da desigualdade.
Os números evidenciam: 175 milhões de citadinos x 12 milhões na década de 1940; 65 milhões de domicílios urbanos x 2 milhões, àquela época; ocupação urbana expandindo em taxas mais altas do que a população (reduzindo portanto a densidade demográfica); 45% dos domicílios urbanos sem esgotos; tempos de viagem casa-trabalho crescentes (ultrapassando as 2 horas diárias para um terço dos moradores das grandes cidades); parque automobilístico aumentando 66% em 8 anos, enquanto a população aumentou 11%; insegurança percebida como um dos maiores problemas sociais; escassez e precariedade na prestação dos serviços públicos.
Esse universo veio até aqui sendo construído mais ou menos no improviso. E é uma magnífica evidência da vitalidade do país e de seu povo.
O fato é que tal sistema tornou-se muito complexo –ao tempo em que a cidade, sobretudo a grande cidade, se insere como protagonista no contexto global contemporâneo, seja econômico, político ou social.
Não obstante, o Estado brasileiro continua alheio a tal patrimônio e a esse desafio. Uma evidência é a ausência de políticas públicas voltadas para as cidades, seja para a infraestrutura ou para os serviços públicos. Assim, os governos agem aquém de suas responsabilidades.
Mas se foi possível tratar as cidades no improviso, não será viável persistir nesse caminho: a qualificação do espaço urbano se apresenta como elemento central para o desenvolvimento do país e para o vigor da democracia. Uma estrutura de planejamento há de ser considerada, tanto no âmbito local como nas demais esferas de poder, através da qual as governanças possam ser efetivas. As cidades metropolitanas –e já as temos em mais de dezena- ainda não dispõem de estatutos minimamente consistentes.
Ocorre que o domínio das posições relevantes nos aparelhos governamentais que tratam da cidade, da habitação, dos serviços públicos e da infraestrutura urbana, está voltado prioritariamente às mecânicas de renovação do próprio poder político. Por definição, têm vistas ao curto prazo –e se afastam de estratégias que impliquem em investimentos constantes em períodos prolongados.
O Brasil percebeu tal conflito de interesses em alguns setores da administração federal, dando-lhes caráter de tarefa de Estado. É o caso da diplomacia, das forças armadas, da receita, entre outros poucos setores –que não inclui o urbano.
Certamente podemos dizer que a democracia há de levar ao paulatino aperfeiçoamento dos sistemas de poder. No nosso caso, porém, tem-se a sensação de crescente subordinação dos instrumentos administrativos por parte da política eleitoral. A tal ponto que, a cada troca de chefe do executivo, trocam-se os titulares de centenas ou milhares de funções de governo, alcançando terceiros, quartos e quintos escalões.
Essa organização político-eleitoral-administrativa há de ter responsabilidade na escassez de políticas públicas que estruturem o desenvolvimento e a democratização de nossas cidades. A persistir, nosso sistema urbano dificilmente poderá desempenhar a contento o papel central que a própria democracia lhe exige. Um descompasso paradoxal.