terça-feira, 12 de abril de 2011

A democratização da cidade

*Artigo publicado originalmente no Globo de 09/04/2011
Sérgio Magalhães
Todos desejamos nossas cidades bem tratadas, funcionais, amigáveis. Sim, mas no cotidiano urbano estamos acostumados com cenas de desrespeito às posturas públicas, de uso inadequado do espaço coletivo, de descaminhos no trato de bens comuns.
Mas, se tais atitudes surpreendem o visitante, nem sempre afetam o olhar local. Quais seriam as razões desse quadro de incoerência entre o desejado e o vivido?
Penso que entre elas se encontra a ainda baixa democratização da cidade, que se expressa por assimetrias importantes na prestação dos serviços públicos.
A baixa democratização, infelizmente, não é um discurso. A prática urbana brasileira demonstra a grande escassez de serviços públicos nas áreas pobres. Sabemos (e nos acostumamos) que nelas há carência de esgoto e de abastecimento de água, falta transporte, que o espaço público é mal tratado, manutenção e conservação quase inexistem, que é intermitente ou ausente o serviço público de segurança.
As assimetrias intraurbanas têm seu corolário na baixa exigência. Como a cidade é una, e vivida por todos,os padrões de exigência tornam-se muito tolerantes — e se rebatem pelo conjunto, desqualificando-o. Aceita-se conviver com inacessibilidade nos passeios, obstrução no trânsito, vazamentos nas redes de infraestrutura, buracos sucessivos, manutenção precária,enfim, incivilidades.
Urbanisticamente, há uma consequência pouco estudada: a mobilidade demográfica na cidade. Isto é, por carência dos serviços públicos, degradam-se algumas áreas e os moradores são estimulados a se mudarem para outros bairros. Muitos o fazem para áreas de expansão. Mas, na medida em que as cidades se expandem, mais rarefeitos e mais assimétricos tendem a ser os serviços.
No Rio, há o exemplo da Zona Norte suburbana. Mesmo estando muito bem situada no contexto da metrópole, milhares de seus moradores optam por emigrar à conta das condições insatisfatórias da área, que se eternizam. O enfraquecimento da região é explicado em geral pelo esvaziamento industrial, mas é preciso considerar o papel da degradação dos serviços públicos,em especial o da segurança. É ilusório achar que será possível combater a desigualdade por decurso de prazo — sem políticas específicas.
Veja-se o caso da retomada dos morros da Penha e do Alemão, em uma política específica que se opõe à degradação. Retomado o coração da Zona Norte, tendem a melhorar os serviços públicos, e os bairros da região, hoje deprimidos, poderão ter um rejuvenescimento no seu parque imobiliário e habitacional, retendo seus moradores.
Tínhamo-nos esquecido que a cidade é o lugar da liberdade. “O ar da cidade liberta”, diz o provérbio medieval. E que o papel fundador do Estado é garantir a segurança. Ela garantida, o jogo da democracia poderá redirecionar prioridades.
Assim, o desafio se voltará para os demais serviços públicos urbanos, no objetivo de reduzir assimetrias injustas.
Muitas cidades brasileiras têm feito o esforço de construir infraestruturas, buscando ampliá-las para as áreas mais carentes. No Rio de Janeiro, a urbanização de favelas já tem boa experiência e é meta da cidade, assumida pelo prefeito, de assegurar que até 2020 todos os assentamentos informais estejam plenamente urbanizados. Esse programa, Morar Carioca, se constituiria como o principal legado social dos Jogos de 2016. A tarefa não será fácil, mas é possível.
Contudo, seja no Rio ou nas cidades que buscam equalizar a oferta de infraestrutura, a manutenção dessa nova realidade implicará em custos financeiros permanentes. Em compensação, serão reduzidos os custos sociais e as perdas de oportunidades e de empreendedorismo que o ambiente degradado acarreta. De todo modo, será preciso uma atenção especial para que os investimentos não se percam. É um trabalho que extrapola os governos e precisa envolver os cidadãos.
Quando as sociedades ficaram atentas para as desigualdades sociais, concebeu-se um acompanhamento que pudesse ajudar a percebê-las de modo sintético: o Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH. Ele tem sido muito útil nas comparações e verificações dos avanços conseguidos.
Quem sabe devamos pensar em indicadores de atendimento dos serviços públicos urbanos? Algo como um IDC, índice de democratização da cidade, que ajude a monitorar a redução das assimetrias na prestação dos serviços. Que nos informe como eles estão no cotejo entre as cidades, mas também que possam informar sobre os bairros de uma mesma cidade.
Afinal, as cidades do século XXI, motores do desenvolvimento, requerem ser lugares seguros, funcionais,democráticos. No Rio, reduzidas as assimetrias, aflorarão com mais força as virtudes da cidade existente, múltipla,diversa, amigável. E o cidadão poderá fundir o desejo e a realidade em sua prática urbana.

3 comentários:

  1. Prezado Professor Sérgio Magalhães,

    Fiquei muito feliz e gostaria de parabenizá-lo por lançar a idéia de criação de Indice de Democratização da Cidade.

    Desejo imensamente que esta idéia seja nucleadora de um grande movimento da sociedade carioca, e que nos agregue em torno de uma luta solidária para transformação da ordem governativa da cidade em direção a uma gestão mais democrática.

    O movimento de Reforma Sanitária levou a sociedade brasileira a conquista da “Saúde como direito de todos e dever do Estado”, inscrevendo-a na Constituição de 1988.

    Desde então, nós do Setor Saúde, temos como determinação fazer valer os princípios do SUS da universalidade, eqüidade e integralidade, com descentralização, hierarquização e participação, buscando garantir o acesso de todos aos serviços de saúde de qualidade. Uma luta penosa e cotidiana.

    Várias experiências como do Canadá, no campo da promoção da saúde, nos inspira na criação e na implementação de indicadores de saúde e qualidade de vida no nível das comunidades. Também a OMS desenvolve um projeto internacional para estabelecimento de indicadores de eqüidade em saúde, que permitam comparar as condições de saúde dos diferentes países.

    No nível da FIOCRUZ estamos trabalhando, desde janeiro de 2010, na implementação do TEIAS-Escola Manguinhos - uma experiência de gestão da saúde no nível local, fundamentada nos princípios da participação comunitária e da intersetorialidade e na noção de saúde do território. A implementação do Comitê Gestor Intersetorial local é um dos grandes desafios
    desse trabalho.

    Como diz o pesquisador espanhol Joan Martinez Alier: “o verdadeiro poder é aquele capaz de impor o método”. Essa é a nossa luta e a Sua proposição de construirmos e implementarmos um IDC é um caminho que certamente nos levará a uma cidade mais democrática, e em conseqüência uma cidade saudável para todos nós.

    Saudações.
    Fatima Pivetta
    Servidora Pública da Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ

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  2. ARQUITETO SÉRGIO MAGALHÃES , BOM DIA. PRIMEIRAMENTE PARABENIZO PELA RADIOGRAFIA E PROPOSTAS FORMULADAS PARA UMA CIDADE REALMENTE DEMÓCRATICA. A POUCO TEMPO ATRÁS COLOQUEI PARA O SENHOR A QUESTÃO DO TRANSPORTE AQUAVIÁRIO PARA O GRANDE RIO, NO PROGRAMA "FAIXA LIVRE" DA RÁDIO BANDEIRANTES.
    SOU MORADOR DA ILHA HÁ MAIS DE 40 ANOS , E JÁ REMETI DIVERSAS MATÉRIAS PARA JORNAIS (ALGUMAS FORAM PUBLICADAS) , SOBRE ESSA QUESTÃO LEVANTADA. POIS, PARTICULARMENTE NA ILHA AS BARCAS FUNCIONAM PRECARIAMENTE , ÁS VEZES COM INTERVALOS MAIS DE I HORA. SE NOS HORÁRIOS DE PICO ENTRE 6 E 9 HORAS HOUVESSE UM INTERVALO DE MEIA HORA COM PERFEITA INTEGRAÇÃO COM OUTROS MEIOS DE TRANSPORTES, TERIAMOS UMA EST. DO GALEÃO , AV. BRASIL, LINHA VERMELHA , COM MAIOR FLUIDEZ DO TRANSITO.
    ESSA PROPOSTA VALEM PARA TODO GRANDE RIO , VIDE S. GONÇALO, NITEROI, BOTAFOGO, FLAMENGO , ETC.
    GOSTARIA DE SEU RETORNO.

    PAULO DUQUE - EX PRES DA AMA PORTUGUE-ILHA, EX CONS. DAQ FAMERJ.

    P.S. MINHA FILHA , ESTEVE NA INGLATERRA , E INFORMOU-ME QUE O RIO TAMISA É MUITO UTILIZADO.

    P.S. VEM AÍ COPA DO MUNDO E OLIMPIADAS.

    PAULO CEZAR DUQUE DE PINHO

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  3. Oi, boa madrugada, prezado arquiteto Sérgio Magalhães

    Li seu artigo no sábado, agora, intitulado "A democratização da cidade" e assino embaixo. Pensando no título que o senhor deu ao artigo, costumo dizer que quem não gosta de politica, é por ela governado; se você se abstém de pensar e agir, alguém o fará por você, mas não necessariamente (aliás, quase nunca), do modo como você acharia melhor. Pensando no título que o senhor deu ao artigo, escrevo-lhe a carta abaixo.

    Em maio de 2010, escrevi um livro chamado "Democracia - do conceito à prática, da representação à participação", editado pela Claridade, cujo lançamento foi na Saraiva, na Paulista, tendo eu feito um segundo lançamento, aqui no Rio, no Museu da República, no Catete, onde moro. O prefácio do livro é do Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo. Em anexo, mando alguns documentos da proposta central do trabalho, que é uma proposta metodológica de gestão democrática das cidades, a qual chamo de "Gestão Cidadã".

    Todos falam, o tempo inteiro, em participação popular, que a cidadania deve ser mais ativa, que ser cidadão é estar cônscio de seus direitos e deveres e por aí vai. Mas em 99% dos casos, quando se fala em participação popular, estão a referir-se no voto com consciência e em ações organizadas, de setores organizados da sociedade, tal como em sindicatos, igrejas, Conselhos como os de Saúde e Educação (já instituídos), movimentos sociais e ONGs. Mas duas coisas podem ser questionadas. Primeira: se a maioria da populaçao é "desorganizada", ou seja, se a maioria da população não é filiada, real ou afetivamente, a nenhuma das entidades aqui citadas, como esta maioria pode "participar", para além do voto a cada 2 anos, por si só, insuficiente, ainda mais com a crise de representatividade da política partidária tradicional? Segunda: se a maioria da população está afastada das decisões que, afinal, lhe comandam a vida, como ela pode, na realidade e não apenas no discurso, participar da vida política brasileira? Quer dizer, com qual metodologia de participação cidadã contamos para tal experiência e que, vital, abarque essa maioria e não apenas os que são "organizados", por assim dizer?

    Creio, sinceramente e sem falsa modéstia, que eu e um grupo de amigos criamos uma metodologia possível para o trabalho com a maioria acima referida. Pode não ser a oitava maravilha do mundo e nem se baseia em um conceito novo, mas é boa e funciona (já a testamos no Rio de Janeiro e em Ponta Grossa, Paraná).

    (continua...)

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